Lizandra Barbuto
1 de dez. de 2021
O ser humano tem uma condição curiosa e misteriosa...
O ser humano tem uma condição curiosa e misteriosa: consegue ser cego para infinitas condições que podem parecer óbvias, mas não se tornam óbvias sob os véus da ilusão. A cegueira é a ação do ego, uma parte desenvolvida em todo ser humano que o leva a ver o mundo com um filtro para enxergar somente o que pode lhe causar prazer e autoexaltação.
Assim, as pessoas vão levando a vida através de prazeres ilusórios, oriundos da satisfação de desejos que, por vezes, se tornam a meta da vida, satisfazer desejos para “Ser Feliz”. “Ser feliz” como objetivo de vida, muitas vezes, cria uma ilusão de consciência e negação de perdas e dores – que são tão necessárias para a experiência de alcançar maturidade.
Estar puramente focado na satisfação pessoal desconecta uma parte muito importante do ser, do sentir verdadeiramente, o que quer que seja.
Neurologicamente o centro do prazer é o mesmo da dor, assim como o amor é a polaridade da dor. Amar implica sentir algo de prazer e de doloroso, como por exemplo o próprio ato de nascer, um dos maiores exemplos de amor, porém acompanhado de dor. Porém, fomos domesticados ao longo de milênios a ver e reconhecer somente o que é bom. Essa é a doença da atualidade, que faz com que cada pequeno desconforto emocional seja classificado como uma doença que pode ser curada por uma pílula, uma ilusão pois qualquer que seja a dor, continuará lá, até ser reconhecida e cuidada.
É verdade que não satisfazer tais desejos pode causar alguma dor, como deixar o coração apertado, sentir-se isolado e não pertencente. Essa é a principal ação do ego: seguir buscando o prazer e satisfação a qualquer preço, para não deixar o coração apertado.
O que é o ego, afinal?
O ego é uma parte nossa, na verdade, essencial à sobrevivência como humanos. Como as sabedorias tradicionais ensinam, ele deve ser nosso servo, e não nós sermos os servos do ego.
O caminho do autoconhecimento é o processo de redução do ego e de desenvolvimento da parte mais essencial e autêntica do Ser Humano, que fica escondido como uma pérola. Dito isso, há dois percursos a seguir: um é o trajeto do prazer e satisfação ilusórios, alimentado por justificativas como “ter prazer”, ou frases do tipo “na vida devemos ser felizes”. Que felicidade é essa? Uma busca insaciável de fama, poder e ter, deixando-se arrastar por impulsos mais arcaicos de autoexaltação ou prazeres fugazes.
O outro é de se dar conta da condição ilusória do ser humano, se tornar responsável por si mesmo, assumir as consequências reais de cada ação, e considerar tudo como uma oportunidade para se reconhecer e trilhar a dolorosa e magnífica jornada de redução do ego. Isso acontece pelo processo de trabalho interior.
As trapaças do ego aparecem de muitas formas, não necessariamente como algo doloroso de imediato, mas sim como um prazer falso, encoberto de uma ilusão de felicidade. Essas trapaças fazem parecer estar tudo bem, mas interferências desse estado aparecem no comportamento, como pela manifestação de doenças, vícios e conflitos, que podem criar um senso de “saber” e “poder” irreais.
Os perigos da ilusão do ego
Há muitas manifestações do ego. Sob o princípio de se autoenganar, a própria pessoa é a mais prejudicada. Alguns exemplos disso são: preconceitos e certezas pessoais que eliminam informações, mantendo somente o que confirma crenças existentes; o esquecimento de eventos da maneira como realmente aconteceram, para manter a sensação de conforto.
Se uma conclusão apoiar suas crenças existentes, você racionalizará qualquer coisa que a apoie. Em outras palavras, em vez de olhar voluntariamente para o novo, a reação é despertar um senso de defesa das próprias ideias sem realmente questioná-las – sejam essas informações quais forem. Como disse o escritor e humorista norte-americano Mark Twai: “Não é o que você não sabe que o coloca em apuros. É o que você sabe com certeza”.
“Todo o problema com o mundo é que os tolos e fanáticos são tão seguros de si, mas pessoas mais sábias estão cheias de dúvidas”, Bertrand Russell
O trabalho sobre si requer humildade para reconhecer que quanto mais você sabe, mais se da conta que há muito a saber, principalmente sobre si mesmo. Essa é a postura dos sábios e, por isso, estão sempre abertos a aprender, pois sabem que há tanto a compreender.
A sensação de certeza gera a sensação de poder, o que faz mostrar ao mundo um ser feliz e realizado – fato que muitas vezes não é real. Entre 11 países, o Brasil é o que mais tem casos de ansiedade (63%) e depressão (59%), de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP). E segundo a Azos, o número de suicídios no Brasil aumentou em 28% entre 2014 e 2019.
Diante dessa ilusão, as relações também são diretamente impactadas e os conflitos acabam imergindo. Por quê? Se o olhar egocêntrico é o predominante, tudo é considerado como pessoal. As suposições preenchem lacunas que fazem a informação confirmar tais suposições, e essa dinâmica alimenta a estrutura do ego e da ilusão de si mesmo.
Por fim, ser conduzido pelo ego leva a vida a ser influenciada pelo contexto e por automatismos, imaginando, na verdade, que está agindo de forma independente.
Um aspecto importante, que reforça atuações egocêntricas, é a necessidade de fazer parte. Isso eleva a importância dada ao julgamento dos outros e à adequação às exigências externas, conduzindo pelas ideias e crenças que torne a pessoa pertencente.
Exercício de olhar para si mesmo
Para explicitar como esse processo de preocupação com o externo se manifesta, é simples: perceba como se comporta perante um elogio ou uma crítica. Se te elogiam, há um autoengrandecimento? Se te criticam, há uma dor e sentimentos de invalidação e injustiça? Esse é o ego.
Napoleon Hill trata esse comportamento como felicidade exógena, isto é, quando ela depende somente dos fatores e considerações externas. A felicidade endógena, por sua vez, é o estado interior satisfeito e sereno, que não depende de fatores externos.
Você consegue identificar se é uma pessoa iludida pelo ego? Caso sim, seria possível uma presença autêntica, responsável pelo o que escolhe, levando em conta suas consequências, e não superestimando as críticas ou elogios? Sim, mas somente quando se dá conta dessa condição essa é uma possível saída.
Os ensinamentos clássicos oferecem um bom estudo sobre isso. O trabalho sobre si é a busca da serenidade interior, para estar ativo e centrado perante qualquer situação. A força e a potencialidade da vida são para se permitir que todo o potencial humano seja desenvolvido, estando ativo para conquistar o poder sobre si mesmo.
Obviamente, cada pessoa é diferente, como uma semente própria, pronta para desenvolver todo o potencial da natureza humana com seus diferentes aspectos, alcançando o estado natural: um ser verdadeiramente livre. Só assim é possível estar e atuar no mundo, com tanto movimento (da tranquilidade à serenidade) para centrar-se, encontrar sentido e a paz em excelência; ser o condutor da própria vida.
Logo, não é possível um trabalho interior sozinho. É preciso um apoio de um grupo, um terapeuta ou uma tradição pois uma vez que se está na ilusão, como saber se a saída que encontrar não é uma ilusão? Assim o primeiro passo é a decisão de começar um trabalho sério sobre si mesmo.
Desse trabalho a auto-observação e o desenvolvimento da atenção sobre si são passos importantes. A atenção é usada como meio para alcançar a auto percepção, a estar presente no aqui e agora o trabalho sobre a atenção ocorre pela prática, instante a instante de estar atento ao que acontece em si mesmo, começando pela atenção ao corpo, relaxando o corpo para ser possível estar atento as emoções, sentimentos e pensamentos.
Com a atenção sobre si, a auto observação verdadeira acontece, e pelo que se observa é possível trabalhar para superar o que pode ser superado.
Desenvolvidas essas habilidades, o caminho é seguir em passo firme e comprometido ao longo da vida para ver e usar tudo que a vida oferece para o auto desenvolvimento, pois todos os dias há uma nova descoberta sobre si e uma nova superação.
Tornando a Vida uma Vida livre contemplada de sentido.
OUTRAS REFERÊNCIAS
Hadot, P. O que é a filosofia antiga? Edições Loyola. SP. 2017.
Hill, N. Quem pensa enriquece. Citadel Editora. 2018.
Ouspensky, P. Fragmentos de um ensinamento desconhecido – em busca do milagroso. Editora Pensamento. São Paulo. 1998.
24 Cognitive Biases That Are Warping Your Perception of Reality. Jeff Desjardins, 2021.