Lizandra Barbuto
1 de mar. de 2022
Para alguns historiadores, os seres humanos são a espécie de mais êxito na história do planeta...
Expressão-chave sugerida: patriarcado
Para alguns historiadores, os seres humanos são a espécie de mais êxito na história do planeta pois têm ocupado todos os territórios, criado histórias, tecnologias que os sustentam e fazem desenvolver novas civilizações. Somos uma espécie intrigante, por um lado tem a capacidade de ser desde a mais generosa e amável pessoa, assim como a mais monstruosa, violenta e destrutiva - como a que disseminou o patriarcado. Esse é o ser humano.
O lado violento é mostrado pela história, pois desde aproximadamente 3.500aC, ela tem sido “um catálogo interminável de guerras para definir fronteiras, ataques a escravos ou vítimas para os sacrifícios e invasões para anexar novos territórios e incrementar a glória do império, ainda que, as razões externas que levam a guerra não sejam tão significativas como a necessidade interna de conflito que têm os seres humanos, é sua autêntica razão”. (Taylor, 2008).
O lado peculiar e maravilhoso do ser humano é a capacidade de refletir, reconsiderar e tomar consciência dos feitos para fazer diferente, para aprender. Seria possível, assim, alterarmos o padrão da história destrutiva para tornar realidade uma civilização mais igualitária, valorosa e cuidadosa para termos mais êxito?
Atualmente, estamos no meio de uma guerra que pode ter consequências desastrosas, que irá acabar com as esperanças de que os seres humanos podem viver em paz. Ainda assim, eu tenho esperança de que possamos – a partir da nossa inteligência intelectual e emocional – mudar esse padrão.
“Machos demoníacos”
Segundo os estudos históricos, um marco destrutivo, fator de mudança social, foi a desigualdade de gênero. Passamos de uma forma de viver igualitária e pacífica para outra, hierárquica e destruidora. Algumas hipóteses patriacarlistas dão razão à violência praticada pelos homens como justificativa de algo natural: devido aos altos níveis de testosterona e baixo índice de serotonina.
A primatóloga Jane Goodal trouxe essa hipótese do “macho demoníaco”, em que afirma que os primatas machos, inclusive humanos, estão programados geneticamente para a violência e assassinato. O tema é tratado no livro “Machos demoníacos: macacos e as origens da violência humana”, de 1998, em que Richard Wrangham Dale Peterson examinam os fatores evolutivos que levam à violência masculina humana. (Peterson, 1996)
Essa hipótese cai por terra quando se observa que na natureza, mesmo entre os machos, a guerra é inexistente. Ainda que tenha algum nível de violência entre algumas espécies de primatas, a belicosidade a que podem alcançar os seres humanos é característica de nossa espécie. (Taylor, 2008)
Outras hipóteses são apontadas por Yuval Noah Harari em seu livro Sapiens, 2018: a mais comum, de que os homens são fisicamente mais fortes que as mulheres (o que não se comprova); e de que, por necessidade de sobrevivência e por conta da maternidade, mulheres passaram a se submeter e aceitar quaisquer condições que o homem estipulasse. Com o tempo, os genes que chegaram às gerações seguintes eram de mulheres cuidadoras e submissas.
Por fim, “como foi que, em uma espécie cujo sucesso depende sobretudo da cooperação, os indivíduos supostamente menos colaborativos (homens) controlam os indivíduos supostamete mais colaborativos (mulheres)? Até o momento presente, não temos uma resposta satisfatória. Talvez as suposições mais comuns estejam completamente erradas. (…) O que sabemos, no entanto, é que durante o último século os papeis sociais de gênero passaram por uma revolução enorme”. (Taylor, 2008)
De acordo com Ferguson, apesar da belicosidade ter começado há mais de 5 mil anos, a violência e a desigualdade são recentes na história se comparadas com a data dos primeiros sapiens. Começou quando os antepassados abandonaram a simplicidade e a mobilidade do estilo caçador-coletor. (Ferguson, 1997)
Até o século XIX, a média era de duas guerras a cada ano. Entre 1740 e 1897, aconteceram duzentas e trinta guerras e revoluções na Europa, falecendo mais de trinta milhões de pessoas. Nos séculos XIX e XX, com o advento da tecnologia, as guerras foram não só mais rápidas como de maior poder mortífero. Esses são somente alguns poucos dados da capacidade de violência do ser humano (e que é praticaa principalmente entre o sexo masculino). (Taylor, 2008).
Isso tudo é visto por alguns estudiosos como uma característica da humanidade: a guerra, a dominação masculina e a desigualdade social.
Domesticação: o mal da humanidade
A dominação masculina apareceu junto à domesticação do ser humano, que o tirou de estados naturais como caçadores e coletores, período o qual as mulheres desempenhavam um papel de muita importância. Elas tinham as mesmas liberdades e direitos que os homens, e a sociedade era mais matrilinear, isto é, a transmissão da propriedade tinha lugar desde a família materna.
Claudio Naranjo, diz que a domesticação foi o mal para a humanidade, a ponto de não sabermos mais onde estamos. Isso porque toda a perspectiva que temos é de um lugar domesticado, de enquadramento às normas e valores de poder patriarcal. (Naranjo, 2005; 2010)
A partir do ano 4000 aC, a história da humanidade tem sido uma crônica opressão de uma pequena parcela privilegiada sobre a massiva maioria. Seria esse o lado escuro da mente humana que gera sofrimento em diversos níveis ao longo desses milênios, classificados como:
Sofrimento social: opressão e sofrimento que os seres humanos inflingem uns aos outros;
Sofrimento mental ou psicológico: procede do interior do ser humano. É tão habitual que não percebe-se a presença. Sendo um hábito não se percebe, mas é tão violento quanto uma guerra e, possivelmente, causa das manifestações violentas na sociedade.
Tudo isso gera um profundo mal estar que, por estar tão dentro do contexto há milhares de anos, não é possível confrontar a causa. Há tantos sintomas de mal estar que é como se tivessemos medo de nós mesmos, “como se a mente escondesse algo que não se pode afrontar”. (Taylor, 2008)
Você abre espaço para uma perspectiva diferente?
Quando escrevo essas palavras, falo de minha experiência, de meus sintomas de sofrimento e mal estar. Isso me anima a fazer o que faço, a me desenvolver como ser humano, mulher, e como mãe, papel pelo qual posso transmitir outra possibilidade para minha filha, que, quem sabe, fará o mesmo com as nossas demais gerações.
Ao longo da minha vida, fui e continuo sendo exemplo de quem sofre os males sociais do patriarcalismo. O efeito principal está relacionado com a minha posição como mulher latina parda, que ocupa espaço ativamente no mundo por meus próprios méritos e esforços. Quando falo das atitudes do patriarcado contra mim, sei que pode ser entendida como vitimização, mas explicarei assumindo o risco de má interpretação.
Essa é, inclusive, uma boa reflexão para quem tem esse (pré)julgamento, pois já se fecha para uma perspectiva, um nítido sintoma patriarcal: fechar possibilidades que mostram uma perspectiva diferente.
A minha partilha provém da experiência e da consciência de compreender quão profundo é o patriarcado na nossa estrutura social, com aspectos explícitos e tantos outros que aparecem sutilmente, sendo inclusive questionados. O patriarcado esta lá, está enraizado na vida humana. E por conta da minha atuação e estudos no campo da colaboração, além de um certo otimismo que gera a energia para seguir cocriando e acreditando que é possível uma sociedade melhor, isso por vezes me impediu de ver a desigualdade em ambientes ditos (e não praticados) igualitários.
Levei um tempo para me dar conta disso, pois tinha a crença de que em ambientes colaborativos eu estaria a salvo. É também um desafio aceitar a realidade quando é sutil, mas torna-se impossível velar uma manifestação direta. Em vários grupos, principalmente em culturas europeias, o meu valor dependia de estar com um homem branco ao meu lado compartilhando as responsabilidades, em vez do meu próprio trabalho.
Como se manifesta o patriarcado nesse caso? Todos os meus méritos são julgados como um aproveitamento e uso da relação, desconsiderando a minha experiência e contribuições. E esse é só um entre tantos tipos de julgamentos vividos.
Outra manifestação visível é de que quando tudo ocorre bem é mérito do homem branco. Mas se algo não é suficientemente bom, a responsabilidade é minha, mulher latina parda. O mesmo para o mérito: concedido de uma forma no privado e, muito sutilmente, quase imperceptível, aos olhos dos outros.
Particularmente, considerando o contexto de colaboração e a intenção de criar um mundo melhor, me parecia inexistente um comportamento preconceituoso em tais espaços ou equipes. Mas há. É sutil, profundo e não menos doloroso.
Essas reflexões não se resumem em ver o padrões externos sobre mim, mas de olhar para dentro e enxergar esses mesmos sintomas. Quando isso acontece? Quando eu super valorizo o masculino ao meu lado, principalmente em relações de trabalho. Há algo interno que diz que só poderei ser escutada se houver um homem ao meu lado. Percebo a autodesvalorização sutil que gera insegurança, muitas vezes dando o mérito ao masculino e desconsiderando o meu.
Superação
Trabalhando com homens em diversos contextos, sendo filha, irmã e esposa, eu reconheço que tudo vem de uma profunda dor. Por conta de toda a história humana, os homens também sofrem. Eles não conseguem conectar-se com a própria vulnerabilidade, para viver a vida como ser humano que sente dor, que é vulnerável, que se supera e aprende. Assim quem sabe os homens poderão ser homens humanos com todo seu potencial ao invés de invalidar e oprimir outra pessoa para se sentir seguro.
De forma alguma essas reflexões são para acusar o masculino como a causa de todas as mazelas do mundo. Os homens são contemporaneamente tão vítimas quanto as mulheres, pois perpetuam um padrão que se manifesta também no feminino. Muitas perpetuam padrões patriarcais quando jogam os filhos contra os pais, não permitem que filhos homens executem tarefas domésticas, bem como quando assumem responsabilidades que são deles próprios.
Seguindo as minhas experiências, está claro para mim que não estamos isentos de preconceitos só porque nos encontramos num contexto de colaboração ou porque somos mulheres. Indo mais longe, para sermos minimamente coerentes, é crucial reconhecermos dentro da gente essas manifestações – uma vez que todos nós fazemos parte da estrutura social em que o preconceito está enraizado, somos domesticados para isso. Trago esta reflexão, porque acredito que o primeiro passo para transformar algo é reconhecer, principalmente em si mesmo para começar a mudança em si mesmo.
REFERÊNCIAS:
Naranjo, Claudio. Mudar a Educação para mudar o mundo. Ed. Esfera. São Paulo. 2005.
Naranjo, Claudio. O ego patriarcal e sua possível transformação. Ed. Esfera. São Paulo. 2010.
Ferguson, R. Brian. Violence and war in Prehistory. Em Taylor, Steve. La caída. Ed. La Llave. Vitoria Gasteiz. 2008.
Harari, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade Sapiens. L&PM Pochet. Rio de Janeiro. 2018.
Peterson, Wrangham. D. Demoniac Males: Apes and the Origins of Human Violence. Londres: Bloomsbury. 1996.
Taylor, Steve. La caída. Ed. La Llave. Vitoria Gasteiz. 2008.